quinta-feira, 12 de março de 2009

Laura



Mais uma vez volto ao ser pequeno e curioso que fui. À casa dos meus pais, às suas bandas sonoras. Juntamente com a "Construção" do Xico Buarque, este tema do Zeca Afonso trazia-me um sentimento que naquela altura não sabia explicar. Ficava presa nos sons, na letra que desesperadamente tentava descodificar. Que segredos eram estes? De que mundos falavam? Que gente triste era esta? E porque é que a música me prendia e me enredava se ao mesmo tempo me causava um desconforto tão grande?
Os meus pais iam soltando pistas:
- Antes ouvíamos o Zeca muito baixinho, sabias? Os vizinhos não podiam ouvir. Ninguém podia saber.
- Antes quando? - perguntava eu, alarmada.
- Antes da Liberdade, sabes? Antes do 25 de Abril.
- E como era quando não havia liberdade?
- Era triste. Toda a gente tinha medo. Nem podíamos conversar. O pai corria perigo. Escondia as pessoas que lutavam pela liberdade.
- Como o Mário Soares e o Álvaro Cunhal?
- Sim, mais ou menos. Cada um fazia o que podia. E não podíamos dizer a ninguém. As pessoas más vinham e levavam-nos. Era muito complicado. Um dia vais entender...
Entendi logo. Não como depois, claro. Mas entendi. Entendi que aquela música misteriosa vinha de um tempo de medo e de silêncio. Um silêncio forçado, que abafava gritos e choros. Tive tanta pena da tal Laura. Devia ser bonita e especial, senão o Zeca não lhe tinha feito uma música. Mas que vida triste havia ela de ter para ele a chorar assim!
Ainda hoje é minha música preferida do Zeca. A misteriosa Laura e a sua espera angustiada permanecem tão enigmáticas e belas como da primeira vez. E o Zeca permanece o contador daquele mundo. Um mundo que já não conheci e que não quero que seja o meu, o nosso. Nunca mais.

Este texto é dedicado ao meu pai, Américo Ferreira. Um homem que lutou sempre do lado certo da luta, sem nunca se prender a outros interesses que não os da sua própria humanidade.

6 comentários:

Artur disse...

loque boa surpresa numa 5f à noite! recordar a música e ler as tuas palavras.

memórias também dos meus pais, as cantigas, as letras - o interesse pelas letras. os ambientes antigos, viagens longas de automovel com as célebres cassetes, o vinil. tempos antigos, mais lentos, serenos, do tempo das histórias. do tempo para ouvir e nos interrogarmos.

é curiosa essa conversa com os teus pais. as músicas duravam tanto tempo, que surgiam as conversas de seguida. era do tempo das lutas, dos bons e dos maus. hoje as lutas são outras - talvez os maus mais inperceptiveis!!

o certo é que ainda faz eco! e o zeca faz muito eco :) e para mim é uma das pessoas que me fez e faz olhar inesperadamente para o essencial e fascinante que há na nossa matéria humana. que passa de geração em geração.

que boa herança o teu pai te deixou minha amiga guerreira!! corre-te nas veias - por isso não tens descando!! :)

boas lutas camarada

Anônimo disse...

comovente. A luta por valores são nos dão desassossego, mas vale a pena estar do lado do que defendendemos, pois a verdade e a honestidade vencem sempre e deixam herança. Gosto de te ouvir nos teus recanticos da ainda menina.
bjs amiga.

Anônimo disse...

Esta música é absoluta. LInda, estou embalada

Inês disse...

é tão injusto, não é?

catizzz disse...

Como quase tudo na vida, que pouco tem de justa...

Inês disse...

Exceptuando o episódio morte pai, e alguns igualmente merdosos que se seguiram, tenho tido uma vida porreira, pá.
O meu luto agora anda transformado numa espécie de egoísmo: faz-me falta e pronto... ainda é muito injusto.

(este comentário inclui aquela música dos Monty Python - Allways look ath the bright side of life)