quinta-feira, 18 de dezembro de 2008
Músicas da Rádio IV - O cabaret da coxa
Na sala de partos estavam quase 40º graus. A parteira suava tanto como eu. Ao meu lado, a menina de quinze anos já tinha parido o seu bebé, mas os seus gritos abafados permaneciam nos meus ouvidos como uma promessa de sofrimento.
Vai doer ainda mais????!!!
O parto não estava a ser fácil e há muito tempo que tinha perdido o controle. Pela dor, pelo medo, pela enorme angústia de nos ver (a mim e ao bebé) entregues, em total e assumida fragilidade, aquele ambiente estranho e desumanizado. E digo desumanizado não pela ausência de seres humanos, que este meu primeiro parto, segundo palavras da própria parteira,"parecia o cabaret da coxa!". A parteira, duas médicas, duas enfermeiras,um pediatra, uma tia avó parteira reformada e o meu homem. Deste magnífico corpo de baile de touca e bata, só o meu homem e a parteira contrariavam a realidade desumana e caótica. Com a calma possível e sempre pela positiva, tentavam que eu me concentrasse. A famosa epidural não tinha produzido qualquer efeito e as dores trespassavam-me como facas. E toda aquela gente de um lado para o outro gritando-me ordens desconexas e absurdas: "Cala-te!" - gritava a tia avó parteira, "faça força como se estivesse a fazer cocó" - dizia uma das médicas, "já se vê a cabeça lá ao fundo!" - gritava o pediatra encostado à parede de braços cruzados como se estivesse a assistir a um espectáculo qualquer.
"Olhe só para mim, oiça-me só a mim" - implorava a parteira com as gotas de suor a descerem-lhe pela face. "Já não consigo, já não posso mais...". Sentia as forças desaparecerem e não conseguia respirar porque uma das enfermeiras se tinha deitado por cima da minha barriga para empurrar a bebé para baixo. Lia na cara da parteira e do meu homem sinais de preocupação e o meu pânico aumentava. "Não vou conseguir, não vou conseguir...".
Havia um pequeno rádio na sala de partos. Acho que estava sintonizado na RFM, o que poderia ser uma verdadeira catástrofe noutro contexto. Ali, qualquer estação, qualquer tipo de música era por si só positivo. Não me lembro do momento exacto, mas esta canção soou pela sala. "Bring me to life"... nem de propósito!
Pouco tempo depois, sempre fixada na parteira e no meu homem a seu lado, acatei a ordem de fazer toda a força possível. "Ela vem aí! Tem o cabelo preto!" - dizia o meu homem emocionado. Fiz ainda mais força e a minha primeira filha saiu para o mundo. Quase não chorou. A parteira segurava-a nas mãos e levantou os braços para que a pudesse ver. Ainda ligada a mim pelo cordão. Uma bebé perfeita, linda e estranhamente tranquila. Primeiro o alívio, depois a indescritível emoção. Ria e chorava ao mesmo tempo e só conseguia repetir baixinho - "a nossa filha... que linda, que linda...".
Os milagres acontecem, realmente. Em qualquer sítio. Até em cabarets da coxa...
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2 comentários:
Bem...
Tanto que eu podia escrever...
Mas acho que escreveste tudo.
E no meio dessa igualdade na dor, e que depois gera as solidariedades femininas (vá-se lá saber porquê?!?), a minha história é tão diferente que se a escrevesse lhe chamaria qualquer coisa como "As 24 horas na Solitária", ou assim.
Porque eu tive direito a uma box só pra mim... E ouvia-as gritar nas outras boxes e ouvia as parteiras a designarem-me como a "que está a parir na box 9".
Mas sozinha.E quando nasceu a minha filha e me perguntaram se queria cortar o cordão, invandiu-me uma sensação de tal importância... Inexplicável! E foi um momento único na vida, aquele. E quando a colocaram ao meu colo e ela chorava e eu disse-lhe olá e ela calou-se e abriu os olhos e olhou para mim... Enfim... Não consigo descrever... As lágrimas nos olhos, já não estva sozinha. Para sempre!
e depois ainda dizem que parir é a coisa mais natural do mundo...
recordo no meu primeiro parto os gritos (muitos) e gemidos das outras enquanto eu me esforçava para fazer a dilatação (dá muita vontade de fazer a dilatação com esta banda sonora...) e depois a música clássica super calmante na sala de partos. e, claro, a cereja no topo do bolo que foi o choro (um choro tipo "estava tão bem a dormir e vocês acordaram-me") da MB. E, depois, o irritante som das máquinas a apitar na sala de recobro...
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