domingo, 2 de novembro de 2008
Discos proibidos
As duas meninas brincavam no quarto. Eram vizinhas, partilhavam tudo, como irmãs.
"Vamos ao quarto dos teus irmãos buscar aquele disco?", perguntou a mais pequena. "Qual deles?", retornou a maior. "O do homem pequeno com o homem grande, claro!".
Correram pelo corredor até ao quarto junto à cozinha. O estore estava corrido, a luz penetrava em raios pelos pequenos furinhos abertos, dando ao quarto um ambiente de mistério e perigo. A mais pequena subiu as escadas do beliche e sentou-se na cama de cima. A mais velha, com gestos precisos e cuidadosos, procurou na estante o tesouro.
"Achei, está aqui!" "Vamos! Não temos muito tempo...".
O lp rodava no gira-discos da sala. Sentadas no chão, olhos quase fechados. Aquelas vozes extraordinárias cantavam numa língua da qual apenas reconheciam algumas palavras. Estavam proibidas de mexer neles, nos discos. Obviamente a proibição aumentava o desejo. O desejo não só de tocar e explorar os objectos, mas sobretudo, o desejo de conhecer aquela música, aquelas vozes. De fazer parte daquele universo desconhecido mas ao qual intuiam pertencer.
Naqueles sons descobriam as infinitas possibilidades da harmonia, descobriam que o que sentiam por dentro podia sair para o mundo em mil e uma formas. Mesmo os medos e as angústias para as quais não tinham nome, não eram só suas. Não estavam sós. O mundo devolvia-lhes um enorme abraço em forma de música.
A fotografia daqueles dois homens, um par esteticamente improvável, contribuia ainda mais para a revelação. Pequenos e grandes, gordos e magros, novos e velhos, pretos e brancos, todos. Éramos todos iguais e juntos podíamos criar beleza.
Foi com a minha vizinha/irmã Teresa e com Simon and Garfunkel que tive a minha primeira lição de cidadania. De solidariedade. Da importância frulcral de nos darmos aos outros.
Só anos mais tarde pude ler integralmente os poemas desta dupla. Quase nada acrescentou ao meu imaginário. Há muito que havia intuído o seu significado...
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